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Não Matem o Passalinho

   Jonas era um menininho que teve a sorte de crescer em uma fazenda. Aquela fase de criança, maravilhada com a vida em todas as formas, foi mais longa e intensa para Jonas. Com seis aninhos, o dia para ele era uma brincadeira que começava depois do café da manhã, pausava para o almoço, e continuava até o entardecer.

    É claro que os seus pais não o deixavam ir tão longe a ponto de perdê-lo de vista, mas o gramado da frente de sua casa e os arredores eram para ele um mundo inteiro para explorar. Quando ele não estava caminhando e olhando para cima, observando aqueles pontinhos pretos flutuando no céu azul, ele estava agachado na terra, provocando o tatuzinho para ele virar uma bolinha.

   Dar milho para as galinhas era brincadeira, colher raminhos de cheiro verde para a mamãe era brincadeira, catar minhocas e pescar com o papai era brincadeira. Quando Jonas descobriu o quão rápido sementes de girassol viravam uma flor gigante que tinha o dobro da sua altura, sempre tinha dois ou três girassóis florescendo, em locais aleatórios do sítio. Tudo para Jonas, até algumas tarefas, era motivo para gostosas gargalhadas.

    Mas, é claro que nem tudo são girassóis. Jonas passou por uma crise; e foi quando seu avô atirou em um “passalinho.

    Era uma tarde seca e abafada na fazenda. Jonas estava fazendo bolo de terra quando todos na fazenda ouviram o tiro de sal do vovô. Jonas viu seu avô com a espingarda esfumaçada, de longe, mas não viu no que ele atirou; pois estava atrás da casa. Os pais de Jonas foram ver o que tinha acontecido e ficaram um pouco surpresos. Jonas foi, caminhando, com um misto de medo e curiosidade, espiar. Quando ele pode ver atrás da casa, ele viu um monte de penas negras agonizantes ante ao seu avô. Ele se lembrou daqueles pontinhos fofos que ele via quando olhava para cima, eram um dos seus, sempre pronunciados, “passalinhos”. Era um urubu, na verdade, nojento e carniceiro. Seu avô via-o assim e seus pais viam-no assim. Mas Jonas via um bichinho que ele admirava, que tinha o poder que ele próprio sempre sonhara mas descobrira, depois de cair em si, que ele próprio, por ser gente, não podia: o poder de voar bem alto.

– O bicho pousou em cima do galinheiro, poderia passar doença pras galinhas. – Diz o velho. Os pais de Jonas fazem expressão de nojo.

    Seu avô aponta a espingarda de sal novamente mas é interrompido pelo neto.

    – Não vovô, não mata o passalinho! Não, não!   

– Filha, tira o Jonas daqui. Não vai ser bom ele ver.

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    A mãe tenta tirar Jonas do local e menino lamenta.   

    – O vovô vai matá o passalinho!

    Temendo amargar a doçura daquela criança; o vovô não teve coragem de dar o tiro de misericórdia. O urubu, na verdade um urubu-de-cabeça-preta, muito comum por todo o Brasil, ficou agonizando de dor. O tiro não foi tão profundo para matá-lo de vez, nem tão leve para que o bicho aguentasse. Para os adultos, o bicho nojento morreria de vez, não passaria nenhuma doença, e ainda deixaria de sofrer. Era melhor para todo o mundo. Mas Jonas não entendia ainda os benefícios da eutanásia; o respeito que Jonas tinha pelos seres vivos era instintivo, não racional. 

    Todos tiveram que voltar aos seus afazeres. Jonas voltou a brincar mas sempre de olho em seu paciente emplumado.

    A mãe de Jonas o ficava observando pela janela da cozinha. Às vezes, Jonas trazia uma minhoca para o urubu, que se banqueteava, quando Jonas jogava o verme ao seu alcance. Ele também pegou uma caneca com água e colocou próximo do urubu. O urubu não conseguia alcançar a caneca, e a mãe de Jonas não permitiu que o menino desse água direto pelo bico. A caneca foi deixada próximo do urubu para quando ele se recuperasse.

    Mais um dia amanheceu e o urubu foi encontrado protegido por duas folhas de bananeira. O urubu matava sua sede com o orvalho que caía das folhas. Jonas tinha arrancado duas folhas de bananeira para cobrir o urubu. O seu avô detestava quando Jonas mexia nas bananeiras. Não podendo descontar sua raiva na inocência do neto, o velho pegou uma enxada e partiu para cima do urubu. 

    – A gente tem que matar esse bicho para não passar doença. 

    – Não vovô! – o menino corria desesperado – não mata o “passalinho”! – E agarrava a perna do seu avô.

     O pai do menino viu o velho caminhar com a enxada na mão e com o Jonas na perna. E foi ajudar.  Ajudar o velho.     – Dá essa enxada que eu mato o urubu.

    O Jonas largou a perna do avô, percebendo que era inútil combater os dois e ficou deitado de bruços na grama, chorando.

     – Amor, deixa o urubu. – Intercedeu a sábia mãe. – Pai… – Continuou olhando para o velho.

     Os três foram pegar o Jonas deitado, arrasado. O velho ainda estava carrancudo.

     – Não vamos matar o passarinho, tá Jonas! Vamos cuidar dele, todos nós.

    Na prática, só o Jonas chegava perto do urubu, os outros tinham nojo. Apenas permitiram que Jonas cuidasse do animal. E o Jonas ficava de guardião do “passalinho.” Se um rato aparecesse para mordiscar o pássaro moribundo, Jonas espantava. Ele não parava de jogar minhoca, pão e arroz para o bicho. Quando a mãe de Jonas lhe deu um pequeno pedaço de carne crua para dar ao urubu, aí a ave ficou feliz.

    Assim foi por mais três dias. Jonas ficava agachado cada vez mais próximo ao urubu. Nesse ínterim, sua mãe foi espiar o Jonas e o encontrou apalpando gentilmente as costas do urubu e consolando-o: 

    – Cê vai melhorar “passalinho”. Toma… pega a minhoquinha… 

    Ela decidiu, mesmo com ressalvas, deixar o menino ter esse contato com o bicho. Ela sabia que era importante para o Jonas e que isso despertaria coisas boas nele.

     Após uma semana dura para o bicho, ele toma forças e se levanta. Jonas flagra o pássaro bebendo água na caneca. Ele corre para dar a notícia para todos na casa. Até o velho carrancudo sorriu.

    Jonas ficou três dias brincando com o animal no gramado. É claro que o animal, selvagem, estava detestando as brincadeiras, só não podia ainda sair voando daquele lugar. Mas Jonas acreditava que tinha um novo amiguinho que gostava de brincar com ele. Foram dias felizes para o Jonas; ele percebeu que a sua bondade teve um efeito positivo no mundo.

Mas no amanhecer do quarto dia, o urubu amanheceu morto. Não parecia que tinha morrido das feridas; era, provavelmente, um velho urubu em seus últimos momentos.

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O menino, que achava que tinha um amigo para muitos anos, ficou arrasado. Ele lamentava, de joelhos, próximo ao corpo do animal. Todos respeitaram o luto do menino.

     O pai pegou, gentilmente, o corpo do animal; agora ele não se importava em encostar no bicho. Jonas havia ensinado para o marmanjões daquela casa que o urubu é, sim, um lindo “passalinho”.

    – É um bicho nobre – exclamou agora, o velho avô – ele cuida para que a floresta fique limpa, né?

    – É mesmo. – Concordaram, em uma espécie de "funeral," enquanto levavam o cadáver e Jonas apenas acompanhava sentido. 

    Eles fizeram uma cova para sepultar o animal. Nenhum dos adultos ali presentes objetou quando Jonas, chorando, deu um carinhoso beijo de despedida na cabeça do pássaro.

    Os pais olharam para Jonas, para ver se o menino já estava preparado para dizer adeus; e com a permissão de Jonas, eles enterraram o pássaro.

     O pai consola seu filho, o mais sabiamente que sua cultura da roça outrora lhe ensinara:

    – Você cuidou bem dele e, graças a você, ele morreu em paz, sem fome, nem sede. Não foi em vão sua bondade. Você foi importante para o passarinho, Jonas. 

   Com um nó na garganta, e a mãozinha enxugando os olhos, o menino ainda se propôs a fazer um pequeno comentário:

     – Pelo menos agora... ele vai poder voar bem alto!

    O luto de Jonas durou alguns dias. Ele ficava um tempo olhando, da janela do seu quarto, para a cova do amigo emplumado. Algumas vezes trazia pétalas de girassol e espalhava pela cova.

    Mas logo t6empo tratou de curá-lo e ele voltou a ser um menino sonhador que amava o céu azul, e aqueles pontinhos flutuantes, seus amados “passalinhos”.

     Essa, certamente, não foi a última perda que Jonas teve na vida. Aos 10 anos ele perdeu seu avô. Aos 50 anos perdeu sua querida mãe. Ele sempre chorava, sem conter nada, nunca permitiu que perdas calejassem seu coração.     Perder o seu amigo "passalinho" foi um dura e valiosa lição que ele aprendeu cedo na vida. Ele sempre diz, hoje em dia, que a perda de alguém deve ser sentida intensamente, porque é a melhor forma de mostrar o quanto a pessoa foi importante na nossa vida.

                                                                                      Um conto de Fernando Vrech.

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