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A Língua dos Anjos

   "Então, classe, como eu já havia comunicado, eu inscrevi a nossa aula da filosofia na apresentação de simpósios que a escola sediará hoje à tarde, e eu ficarei muito feliz em ouvir discursos bem esmiuçados e inteligíveis e, não menos importante: discursos deleitosos de serem ouvidos, deleitosos no sentido dar vontade de ouvir atentamente até o fim e não deleitosos no sentido de dar sono, vocês sabem o que eu quero dizer."

   "O tema do simpósio da nossa classe será, como todos foram previamente avisados, Grupos Sociais. Dos trinta trabalhos apenas cinco alunos se inscreveram, o que cobriu apenas metade das vagas oferecidas à nossa classe, portanto será um simpósio… bem curto."

   "Teremos primeiro o discurso do senhor Takashe, sobre a comunidade nipônica que mora em São Paulo. Confere, senhor Takashe?"

   "Sim, professor, acabo de colocar o último pingo no i do meu discurso enquanto o senhor me perguntava isso."

   "Ok, senhor Takashe… depois teremos a senhorita De Lara, que fez um trabalho sobre o Alpha… teta, é isso? Theta?… a fraternidade universitária da irmã dela. Tudo ok, senhorita?

   "Preparei informações… a … rra... sa... doras… tio, podes crê."

"Senhor Tanneli, será o próximo com a comunidade mística Messiânica Sideral… tudo correu bem, senhor Tanelli? Anteontem, o senhor me apresentou alguma… dificuldade quanto a esta comunidade, os meus conselhos lhe foram úteis?"

   "Ãhh, sim professor. Eu pude terminar tranquilamente o trabalho."

   "Para quem não sabe o senhor Tanelli preferiu pesquisar pessoalmente, ele presenciou os cultos e entrevistou os membros da comunidade, creio que, sem minimizar os outros trabalhos, o discurso dele será muito interessante."

   O professor lançou expectativas sobre o trabalho do Tanelli, e isso o aborreceu um pouco. Após o jovem ficar um pouco sem graça, o professor continuou:

   "Logo após o senhor Tanelli, a senhorita Estela discursará sobre o clube de xadrez… cadê a senhorita Estela? Não chegou ainda… bom, se ela não faltar, após ela teremos o discurso do senhor Fagundes... ããhhh, senhor Fagundes… creio que o grupinho de pagode da tua rua não represente bem a ideia do simpósio… mas faça o melhor que puder…"

   Durante o intervalo, é claro, uma pequena reunião de alunos curiosos esteve em torno do Tanelli lhe fazendo perguntas sobre o seu discurso, que ficou claro que será o ponto alto do simpósio, uma vez que ninguém se atreveu a fazer pesquisa de modo físico, presencial. O Gregório Tanelli é um jovem que raramente se torna o centro das atenções, mas quando esta raridade acontece, o rapaz ofusca os carinhas mais populares da escola.

   "Por que essa ideia de ir investigar pessoalmente a comunidade Greg, não é só mais trabalhoso?", perguntava a Priscila, já ativando os ciúmes do namorado que rondava a conversa.

   "Eu gosto de descobrir a informação e não copiá-la de algum livro velho. Rato de biblioteca, como o velho Akshan de filosofia, não faz o meu gênero. Eu não tenho apenas olhos para ler e cabeça para entender, eu tenho pernas para explorar, ouvidos, mão, olfato, etc. Eu gosto de ter contato com o mundo, é isso." Era isso que dizia o Tanelli para justificar sua decisão diferentona.

   O teatro da escola estava pronto para receber os simpósios. Os vinte discursantes se sentaram em um bloco de cadeira separados. Da classe do professor Akshan de filosofia, os discursantes mais promissores do simpósio estavam bem focados; o Yuri Takashi estava fazendo as últimas anotações em seu esboço e eu observei que o Gregório Tanelli estava pondo na ordem fichas de slides; o que revelou que ele será, talvez, um dos únicos deste evento que irá usar recursos visuais; o zeloso rapaz será mesmo o astro, que ele nunca quis ser, esta noite. Já a senhorita De Lara estava tendo altos papos pelo celular.

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  Mas um aluno do professor Akshan bastante ativo na escola, o Jhonatan, decidiu não se inscrever para o simpósio. Ele preferiu cobrir o evento para o jornalzinho da escola. Então, este aluno é este que esta aqui descrevendo esse acontecimento escolar… oi … Este evento de escola, que deveria ser muito chato, eu notei que transcorreu de uma forma um tanto incomum por conta de pequenos detalhes do discurso de "vocês sabem quem."

   A hora da nossa classe discursar chegou e o Yuri Takashi amaciou a plateia com as suas informações precisas, seus pingos em cada um de seus is e deixou a plateia bem informada e talvez um pouco cansada; para depois Elza De Lara subir e elevar o ânimo da plateia com informações quentíssimas sobre os triângulos amorosos, os batons nunca devolvidos e os castigos de feminização forçada que rolavam no AlphaTheta da faculdade da irmã dela.

   Enfim, Gregório Tanelli subiu no palco. As risadinhas que eram resultado do discurso anterior silenciaram rapidamente, porque a essa altura a escola inteira já sabia que o trabalho deste aluno era bem mais profissional, que ele havia feito mesmo um tipo de jornalismo investigativo e que seu discurso seria algo como um Globo Repórter dos anos noventa. O professor Akshan subiu os degraus laterais do palco para assistir seu aluno de uma posição privilegiada atrás das cortinas.

   Horas antes, na classe, houve a revelação de que o Tanelli pediu ajuda do professor em algum ponto; então o professor já sabia bastante sobre o conteúdo do trabalho; o que teria cativado a curiosidade desse professor tão estrambótico?

   Esse é o único discurso do simpósio que eu transcreverei na íntegra por ser, claramente, o ponto alto da noite. O jovem Gregório Tanelli introduz, então, o seu trabalho:

    Boa noite, queridos colegas… querido corpo docente… querido professor Akshan…

    Nós dificilmente nos damos conta de como é diverso o pensamento humano. Em nosso pequeno mundo, em nossa bolha, pensamos haver aí uma meia dúzia de religiões, dois lados do espectro político, algumas tribos urbanas… enfim, uma dúzia de formas de pensar… talvez nos identifiquemos com umas três delas.

    Neste simpósio fomos apresentados a alguns ideais mais diversificados: a cultura japonesa, com seus fortes conceitos de honra, e um clube da faculdade, com uma hierarquia fortemente estabelecida, onde os calouros sofrem castigos para o divertimento dos veteranos.

   O que vimos aqui nem arranhou a superfície. Neste planeta, existe todo um universo humano com milhões de formas de pensar, milhões de mundos, por assim dizer. Com conceitos que você pode admirar, reprovar ou simplesmente achar exóticos.

   E por que deveríamos sair do nosso sistema, com os três ou quatro ideais que escolhemos por identificação, e explorar tantas novas formas de pensar?

   Eu posso reformular essa pergunta em parábola: Se tivéssemos uma espaçonave, capaz de percorrer anos-luz em segundos, por que iríamos correndo (certamente iríamos) para dentro dela, ligaríamos os motores e viajaríamos para a estrela mais próxima... ou mais distante? Porque iríamos sair do nosso confortável planeta, cheio de água, comida, e jardins para visitar outros mundos, que podem ser radioativos, inóspitos, venenosos e cheio de monstros? Sim, somos curiosos. Mas como explicar a enorme alegria que sentiríamos se descobríssemos, fora de nosso planeta, uma única célula? Não é a célula em si, chata e enfadonha, é o que ela representa: uma expansão da ciência.

   Por que, então, conhecer novas formas de pensar, novas ideologias? Porque novos pensamentos podem representar uma expansão para a nossa mente. Existe vida fora de nossa mente. Existe sentido fora de nossa mente?  O que eles percebem que nós não percebemos? E como nós mesmos, dentro de nós, iríamos entender essa nova percepção, já que não precisamos concordar?

   Nós queremos desvendar o desconhecido, e não podemos fazer isso presos dentro de nós, temos que ir além de nossa confortável forma de pensar, temos que entender a forma de pensar dos outros, para capturar novas percepções da realidade.

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   Eu passei justamente por esses questionamentos quando fui conhecer a Comunidade Messiânica Sideral. Eu escolhi estudar um grupo social o mais diverso o possível do meu modo de pensar, anos-luz distante do meu modo de pensar…. porque eu queria saber qual a vantagem de se conhecer quem pensa diferente, pois eu não via muita utilidade nesse empreendimento. Eu sempre achei mais eficiente escolher meus ideais me baseando sempre na minha percepção da realidade. Esse trabalho me mostrou que eu estava redondamente enganado.
   É uma comunidade religiosa que prefere se manter afastada do que eles chamam de mundanismo. Eles acreditam que uma espécie de anjo quer oferecer a eles, não o caminho para o céu, mas o caminho para a raça humana evoluir.
   Entrei em contato com a reitora deles, e minha visita no local onde eles vivem seria bem vinda. Esta reitora, se chama Hoyra Stierna; ela me disse que foi o anjo que escolheu o nome dela, que vem do gótico, e não quis revelar seu nome de nascimento afirmando que "não há motivos para relembrar um passado morto."
   Ela abriu a porteira da propriedade deles, onde eles buscam viver o máximo que podem na subsistência. Enquanto Hoyra me guiava a pé pelo caminho até as casas, eu já pude notar uma ordem incomum no local. A rua era de terra mas muito bem nivelada e limpa, sem um único mato ou pedra no percurso; e um gramado, em ambos os lados, que não era curto, já que não fora feito exatamente para a movimentação humana e sim, para a pastagem animal. Também não era alto ao ponto de ser um terreno desleixado, tampouco qualquer praga vegetal era vista. Os animais eram cabras, umas poucas vacas e um ou dois cavalos. E não exalava mijo ou estrume, era um afável perfume de grama.
   "Os animais que precisamos para alimento são criados com respeito, carinho e liberdade. E raramente abatemos, pois nos servimos de pouca carne na nossa comunidade." Disse Hoyra Stierna.
   A própria reitora se apresentava com um asseio incomum. Sem maquiagem, seu rosto jovem era emoldurado por um longo cabelo liso e negro dividido ao meio. Suas roupas, não eram exatamente brancas, não, não eram como santos. Hoyra usava um vestido longo e prateado que chegava aos pés, ombro único, com um cinto estranho da mesma cor, que parecia ser parte da indumentária.
   Quando chegamos até o centro da vila eu recebi o olhar de desaprovação dos mais rigorosos.  Hoyra os reuniu e conversou com eles à parte. Depois voltou e me disse que eu não poderia vestir preto na vila, pois é uma cor egoísta que absorve a energia luminosa. Ela iria me avisar disso mas não previu a tamanha intolerância de alguns da comunidade. A reitora me levou até a casa dela e me ofereceu a indumentária masculina típica deles: um macacão, também prateado, com mangas longas e colarinho em mandarim. O cinto, o mesmo, que parece ser um acessório que transmite identidade ao grupo. Não me foi oferecido nenhum calçado, todos andavam sempre descalços.
   "Consegue notar agora como é bom usar uma cor que compartilha tua luz com os outros?" Foi a estranha pergunta que ela me fez enquanto me mostrava a vila. Os integrantes da comunidade agora me recebiam bem, com aceno estático de mão erguida até a altura do queixo, algo que eu correspondi de forma espelhada.
   Todos usavam também um lindo broche no peito, uma espécie de estrela-de-Davi. A mim não foi entregue nenhum broche para usar; possivelmente porque era este o verdadeiro símbolo de pertencimento da comunidade. Assim que entrei na vila já havia um certo movimento, todos seguiam para uma das casas, um local de reuniões.
   Ela me levou para este local e se dirigiu até a frente do salão. Não havia palco, ela falava na mesma altura dos outros.
   "Nosso seráfico Emissário nos trouxe hoje um mundano para presenciar a glória," ela ergueu o braço em minha direção, pegou a minha nuca e me levou, gentilmente, para o centro do evento. Todos tinham pouco decoro em tocarem uns aos outros, embora nenhuma malícia ficava evidente. As mãos da reitora eram suaves e arrepiantes, e não foi fácil manter o clima inocente, enquanto ela acariciava levemente minha cabeça conforme falava.
   "Ele irá presenciar a bem-aventurança que nos prestigia de forma exclusiva desde os céus! Ele irá ouvir as palavras de nosso Emissário?"
   "Sim, glória ao Santo Emissário." O coro era uma reza decorada e monotonamente exclamada, enquanto as verbalizações da reitora eram enfáticas e cheias de emoção.

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   "O nosso anjo designado para nos decifrar a sabedoria do grande Elohim!"
   "Salve, Elohim, que enviou o Emissário."
   "Depois de se maravilhar com milagres e manifestações divinas, ele irá voltar para o mundo e irá passar a mensagem para outros mundanos. Porque a nenhum de nós foi permitido nos misturar com o mundanismo."
   "Salve também esse mensageiro." Disse um dos fieis de forma espontânea.
   "Sim. Ele nos poupa de contaminação com o mundo!" A reitora reiterava.
   "Sim, salve o mundano!"
   "E digo mais… isso foi profetizado pelo Emissário!"
   "Salve…" aqui a plateia se perdeu no que dizer, e silenciou.
   "Sim. Após tantos anos… o Emissário voltou a falar conosco!"
   "Salve Emissário." Aqui ficaram incontidos e exclamações aleatórias se seguiam.
   "E ele disse que uma revelação para o mundo estaria próxima! O meu entendimento é que este mundano é o seu enviado. Que me ligou minutos após minha visão. Não há coincidências nos desígnios do céu. Está preparado para presenciar a primeira maravilha, mundano?"
    "…" foi o que eu disse, ou não disse.
   Sem esperar por resposta, a reitora olhou para cima, com os braços erguidos e, sem sair do lugar, ela olhou para mim e emanou palavras em um tom quase cantado.
    "Tasha no faul lo talah... ana con te sé luí oliara con te sé talah..."
   Então, ela olhou para mim, eu estava perplexo, ela esperando minha reação.
   "O quê significa?" Perguntei.
   "Foi uma mensagem do Emissário para você, só você pode compreendê-la."
   "Mais eu não compreendo, qual idioma é a mensagem? Para eu encontrar um tradutor."
   "Não é um idioma falado por seres humanos."
   "Mas eu não entendo nada!"
   "Então, você entenderá quando chegar a hora de saber."
   Saí daquela casa de reunião estarrecido com o que vi, muito curioso para saber se era algum tipo de linguagem ou se a reitora estava só inventando umas palavras sem sentido; parecia mesmo uma linguagem, e não uma mera vocalização inventada.
   Após passar algum tempo recebendo respostas evasivas ao perguntar aos integrantes do culto sobre o anjo, já era por volta das sete da noite. Assim, eu fui levado para o pátio e me sentaram em uma das diversas mesas que haviam no local. O pano que cobria as mesas, prata, os pratos e copos eram vítreos, não pude dizer se eram de cristal. Os talheres, prata, e pareciam de prata mesmo.
   No centro do pátio, havia um altar com flores, e alguma purpurina polvilhada ao redor, mas o nicho do altar estava escondido por uma linda cortina prateada e eu não pude ver a aparência do que, já deduzia, era o tal anjo.
   A reitora apareceu ante a todos os sentados e disse:
   "Para prestigiar o nosso mensageiro mundano, hoje iremos nos exceder ao prazer da carne, pois abatemos um cordeiro. Esperamos que o mundano aprecie."
   "Todas as refeições fazemos juntos como família porque somos todos irmãos… E você, mundano, é primo, então pode comer conosco também." Disse a minha aleatória companheira de mesa.
   Então nos foi servido o jantar. Primeiro trouxeram um pratinho com um cubinho de queijo ao lado de um cubinho de carne, dois ovos de codorna e uma vagem de quiabo refogado, e encheram o meu copo com um suco que reconheci ser de goiaba.
   Terminei rapidamente e perguntei com decoro para a moça na mesma mesa:
   "Amei a entrada. Quando vai vir o prato principal?"
   "A refeição é essa," ela respondeu sorrindo. "Foi estranho você terminar rapidamente."

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   "E eu não posso repetir?"
   Ela fez um assustado sinal negativo com a cabeça.
   "Talvez o mundano não tenha se saciado com a refeição, mas deve entender que assim nos orientou o nosso santo seráfico," disse a reitora, apontando para o altar no centro do pátio, "para termos uma vida longa e desprovida das maldições mundanas, que vocês chamam de câncer."
   "Pode ter sido pouco para mim, mas estava saborosa", disse eu, mas não estava, nenhum tempero, nem mesmo sal.
   Mesmo quando todos já haviam se dispersado, embora o pátio ainda estivesse com algum movimento descontraído, aquele altar me chamava a atenção, devo dizer mais honestamente, me excitava a curiosidade e a reitora percebeu meu interesse.
   "Podemos prestar homenagem ao Emissário mas não podemos olhá-lo. Por que ele não deseja a idolatria." Explicou ela.
   "Mas então por quê vocês tem uma imagem dele?"
   "Nós adorávamos ele antes. Isso, antes dele nos agraciar com sua sabedoria. Ele se recusou a receber louvores; assim como o anjo de Apocalipse 19:10 ou mesmo Jesus em Marcos 10:17,18."
   A reitora foi embora e todos se recolheram… e lá estava eu com a cordinha da cortina na mão. Eu não sabia se era um desrespeito ver o ídolo, mas, como eu estou discursando aqui para seres humanos também, creio que entenderão minha atitude.
   Como eu disse no começo do discurso, nós queremos conhecer outras formas de pensar porque nossa mente nos impele a conhecer novas perspectivas. Eu não iria embora sem ver aquele ídolo! De algum modo eu sabia que eu, naturalmente, iria puxar aquela cortininha.
   Eu não apenas puxei a cortina eu fotografei o ídolo para vocês. Slide número um, por favor...

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   "Mas um dia eu estava nessa fazenda, era só minha antes, sabe, eu havia comprado com o dinheiro do dízimo. Então, certa noite, aqui, uma luz explodiu naquele gramado e do centro o esse lindo ser de luz apareceu, só para mim, eu… embora eu só tenha visto ele de longe ele era… ele era… lindo com esses cabelos dourados asseados e essa expressão de… retidão... 'Pare de sangrar essas pessoas…' foi o que ele me pareceu dizer, numa voz desencarnada, como se fosse o vento a falar comigo."
   "Eu me apaixonei na hora, é claro, e por isso ele não mostra mais sua imagem, me explicou que 'seria desnatural ele inspirar a adoração ou o coração.' A partir de então eu trouxe meus fiéis para viver aqui, a fazenda é deles, afinal de contas. Ordenei que cobrissem a imagem de Ashtar. E apenas quando ele me inspira, eu vou até a floresta para ouvir o que os ventos de sua santa sabedoria me ensinam...'não coma demais'… 'álcool é um ópio'… 'a luz é um alimento'… frases assim. Às vezes, eu ouço também ele falar nesse idioma angélico, lindo e sagrado, e repito ele nos cultos, embora não entenda. O que eu disse para você aquela hora… não foi invenção minha mundano."
   Ela me convidou para dormir no aposento dela, aposento em que ela morava sozinha. "Nossas ideias não estão poluídas com o mundanismo do qual você está habituado; ninguém vai pensar mal de você se você dormir na minha casa." Ela garantiu.
   Então eu passei a noite da casa de Hoyra Stierna, numa cama de hóspedes.
   De manhã, a luz da janela me revelou um dia ensolarado, maravilhoso, naquele lugar asseado, pássaros cantando, cheiro de grama, enfim. Sem ter jantado direito eu levantei pensando no café da manhã; eu estava ansioso para comer algo, nem que fosse um cubinho de pão.
   Eu saí da casa de Hoyra e vi todos eles de pé no gramado, parece que estavam fazendo uma oração. Perguntei para Hoyra se eles tomavam café da manhã.
   "É claro," respondeu. "É o que estamos fazendo. Nosso café é o sol, pois 'a luz alimenta' disse o Emissário."
   "O café não pode ser de comida?"
   "Comemos comida material somente uma vez por dia."
   Foi a gota d'água para mim. Acredito que vocês entendam que eu simplesmente não podia ficar mais naquele lugar. Eu disse a Hoyra que eu teria que ir embora para me alimentar.
   "Amanhã a noite teremos um evento especial, na floresta. Vamos todos tentar ouvir o anjo, ele nunca soou sua voz para o grupo, mas uma vez conseguimos ver sua luz na floresta. Venha, seu trabalho só estará completo se participar desse evento."
   Eu saí de lá com algum material para compor meu trabalho. Eu tinha um culto interessante, onde todos vestem uma espécie de uniforme prateado. Tinha a Hoyra Stierna, outrora vigarista, e agora afirmando que consegue mesmo contactar um ser sobrenatural. E tinha a frase, na língua misteriosa, que ela proferiu no culto.
   Essas crenças humanas, embora sejam fascinantes, desabam sob o escrutínio científico.


   Neste ponto do discruso do Tanelli, vi o professor por a mão no queixo, ele faz este gesto quando está decepcionado.

   Vozes ao vento não são nada mais do que pareidolias auditivas, tendemos a dar sentido ao que ouvimos. Luzes na floresta todos sabemos que não passam de fogo-fátuo, quando o metano que é resultado do metabolismo de bactérias sofre uma ignição quando sai da terra e entra em contato com o oxigênio. Línguas Estranhas eu sempre suspeitei que fosse invenção mesmo. Mas seria um anticlímax terminar meu trabalho assim. Eu não gosto de entregar um trabalho que deixa de ser interessante no final.
   Diante disso eu procurei o professor Akshan. Em uma rápida conversa, ele me aconselhou a não racionalizar o que vi tão cedo, mas, acreditar, pelo menos que há um fundo de verdade. Ele me disse que o ceticismo é bom, mas não ao ponto de simplificar demais o que estamos estudando. O desconhecido é sempre mais complicado do que a nossa razão deseja.

   "Ele é bonito, não é?" Disse Hoyra Stierna, que se manifestava atrás de mim, sem eu ter notado. Eu me assustei, pensei que seria repreendido, mas então me acalmei e continuei a conversa.
   "O… emissário, é assim?"
   "Seráfico Emissário."
   "Por que chamam ele de emissário?"
   "Porque ele disse que o era. Emissário do céu."
   "O Seráfico Emissário, porém, não fala com você desde o começo?"
   "Não. Quero ser honesta com você, por isso vou te contar um segredo, aí eu não conto que você puxou a cortina."
   "Combinado."
   "Eu achava que eu era uma vigarista." - Ela notou a minha expressão de "nada surpreso com a decepção." - "Eu inventava mesmo línguas na hora, sem nem planejar. Eu extorquia o dinheiro dessa gente, eu… via outros charlatões psicografando este tal anjo aí, um tal de Ashtar Sheran, e tirei proveito disso, afirmando que ele falava em minha mente... hmpf."

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   A primeira coisa que eu pensei foi nesse Ashtar Sheran. O que eu pesquisei sobre ele é que alguns realmente afirmam que essa pessoa, ou ente, os contacta. E contam que ele é uma espécie de santo, ou mensageiro, que está sempre preocupado com o rumo que a humanidade está tomando.
   Assim, eu passei a considerar que nem tudo o que vi na Comunidade Messiânica Sideral podia ser assim tão simples. Eu tinha um anjo que, na pintura do altar, não parecia bem um anjo, parecia quase humano; com um nome... já consagrado anteriormente, com alguma história prévia. Eu pensei em alguém disfarçado brincando com a mente da mulher. Um final do tipo história de detetive, quem sabe, onde alguém é sempre desmascarado. E eu tinha também uma frase estranha que bem que poderia mesmo significar alguma coisa.
   Eu me lembrei então que Hoyra havia me dito que seu nome vinha do gótico. Eu vi então uma linha investigativa pra seguir.
   Fui na biblioteca investigar sobre os Godos, falantes antigos do idioma gótico. Nada sobre o idioma gótico, mas eu descobri, por meio de uma curta referência em um desses livros, que houve, em São Paulo, um historiador que era fascinado por idiomas escandinavos e parece ter tentado desvendar um raro idioma falado por um pequeno grupo de pessoas nos alpes suíços. Alguns desse povo ainda eram capazes de falar esse antigo idioma, eram bilingues. Assim, esses antigos poderiam explicar o significado do idioma. O que me chamou a atenção é que, no pouco que se falou sobre este povo misterioso, na referência, havia a observação deste historiador de que tal povo não gostou de suas roupas pretas.
   O nome deste historiador era Moacyr Campestre. Ele viveu no começo do século e seu neto montou um museu em sua antiga casa para homenageá-lo.
   Então decidi ir até esse museu, o Memorial Moacyr Campestre, para ver se eu consiguia informações sobre a expedição que ele teria feito até os alpes.
   Felizmente, para mim, o neto do historiador estava lá e teve o prazer de me contar a história do avô.
   Ele contou que Moacyr chegou aos alpes em 1922, ele encontrou esse remoto vilarejo, onde foi muito bem recebido. O vilarejo era habitado por umas duzentas pessoas, o historiador estimou.
   O que mais o impressionou foi que todos eram bastante nórdicos e ele não encontrou ninguém de tez mais escura ou de cabelos pretos, características que alguns, mesmo entre os povos escandinavos, tinham. Eu pude trazer comigo uma foto de uma senhorita dessa etnia, que Moacyr fotografou no vilarejo; a roupa parece preta, mas Moacyr conta que era um azul intenso e acetinado, não capturada pela sépia da foto. Slide número dois, por favor.

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   Mas, quando Moacyr ouviu os mais antigos do vilarejo falando o idioma ancestral, ele não conseguiu relacionar a nenhum idioma anterior, nem mesmo ao proto-indo-europeu. Isto o deixou perplexo. Como os mais antigos também falavam saxão, Moacyr pôde estudar o idioma e montar um rústico dicionário.
   O neto dele me contou uma curta lenda, que os antigos preservaram no idioma misterioso, de que os primeiros moradores daquele vilarejo, a centenas de anos atrás, receberam de elfos, ovos dos quais nasceram crianças lindas, que mais tarde se casaram com os jovens do vilarejo, formando assim as famílias basais que os antecederam.
   Eu perguntei ao senhor Campestre, o neto, se seria possível ele tentar ler, usando as anotações de seu avô, a frase que Hoyra havia me dito.
   Ele pegou o papel onde eu transcrevi a frase e disse que alguma coisa era familiar. Também um linguista dedicado, o homem levou algumas horas para decifrar algo aproximado. "Aproximado," foi o que ele me disse; já que ele não conseguiu identificar exatamente a frase com o idioma daquele povo. "É diferente como o castelhano é diferente do português moderno", ele disse. O que insinuava que o idioma da frase pudesse ser mais antigo ainda, talvez o idioma ancestral daquele povo, talvez o idioma que aquelas crianças angélicas falavam.
   "Tasha no faul lo talah…" ele recitava. "Bom, 'tassa' significa algo importante, necessário. "talá" é noite…  'no faul'… talvez 'nu fól', que seria 'você estar'… 'Tassa nu fól rô talá' significaria algo como: 'É importante você estar na noite', alguma noite específica, sem dica de qual noite seria essa. Aqui poderia ser 'Hana kô te cê lhurí'… 'Nós vamos conversar juntos'… olara? Holhiárah, talvez… 'como nunca'… Portanto…talvez... 'Iremos conversar juntos como em noite alguma faríamos.' Onde achou esta frase?" Ele me perguntou intrigado. Eu enrolei sem dar muitos pormenores.
   "É importante você estar na noite.  Iremos conversar juntos como em noite alguma faríamos." Isso remeteu, naturalmente, ao evento que Hoyra havia me convidado. Se a frase era para mim, ou se Hoyra só pensasse que fosse para mim, eu não sei qual alternativa. Eu pensei se eu não seria apenas um intruso aceito por um puro mal entendido dela. E porque esse tal anjo fala com ela, algumas vezes, em um idioma que ela não entende, e que foi tão difícil para mim entender... me leva a pensar se essas frases tampouco fossem direcionadas para mim e mesmo para ela. Poderiam ser pessoas falando em código, que Hoyra ouve de alguma forma. Poderia não haver nenhuma relação entre o que me foi dito e o idioma alpino misterioso a que cheguei; na vida há muitas grandes meras coincidências, que ficamos querendo por sentido. Eu não tenho problema nenhum em aceitar que foi tudo coincidência.

   De qualquer forma eu fui… naquela noite.

   Aqui, o outrora inabalável jovem Gregório Tanelli, titubeia algumas frases com certo nível perplexidade, que ele só poderia esconder de si mesmo com a ideia de que tudo foi coincidência. Eu, na plateia, junto com alguns outros, como percebi, críamos que havia muito mais nessa história e ficou a sensação de insatisfação, já que o Tanelli, embora tenha feito um trabalho primoroso e investigativo, poderia ter cavado muito mais esta história, se ele não tivesse começado a supor que tudo não passava de uma coincidência.

   De qualquer forma eu fui… naquela noite. E… eu vi… esse Ashtar Sheram…

   Falatório na plateia revela um certo choque na declaração do Tanelli.

   Ou... me pareceu, ãhh... um pouco parecido com o quadro do altar.
   Quando eu cheguei até o portão da fazenda, já de noite, ninguém pareceu ouvir minhas palmas. Eu entrei, já que eu era convidado, mas também não encontrei ninguém na vila. Então eu vi um clarão estranho na floresta, podia ser alguém da comunidade com um farolete, não é?


 

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   Eu entrei na floresta, era um bosque da fazenda, e não exatamente uma floresta, e eu vi uma meia dúzia de fiéis passarem por mim chorando em desespero, correndo para fora do bosque. O que eles teriam visto que os deixaram assustados?
   Continuei seguindo a luz que estava mais fraca agora. Lá na frente eu vi uma cena até bonita, apesar dos que se assustaram. Me lembrou, inclusive, aqueles quadros clássicos de pessoas sentadas ouvindo alguém ensinar. Mas neste caso, alguns estavam sentados atentos, outros estavam desmaiados, outros estavam de pé, em êxtase.
   Mas o que mais me impressionou é que não era Hoyra ensinando. Não, ela estava entre os que ouviam sentados, quem ensinava era um homem alto e loiro, vestindo algo até parecido com a roupa que me deram, mas era turquesa e com mais requinte. As palmas de suas mãos tinham uma espécie de lume… como no quadro.
   O homem percebeu minha presença, virou a palma da mão brilhante para mim, sorriu, e disse uma coisa que anotei aqui, deixa eu ler para vocês:
   "Batriartha olí aná êh semúl. Vaal oliara con te se luía. Ne vahmer batriartha con te utê olifara aná con taná utê. Aamátonaiel."
   Então, ele foi embora em uma explosão de luz, parecido com o que Hoyra havia me descrito em seu relato.
   Em lágrimas, Hoyra vem até mim, em desespero mas em estado de pura maravilha: "Ouviu o que ele disse a você? Mensagens maiores que meras frases ele não fala para entendermos, ele fala na sagrada língua dos anjos. Louvada seja a mensagem sagrada de Deus. Acredita agora que eu estou mudada? Que eu não engano mais… que eu sigo algo da luz, da benevolência, embora eu não entenda tudo? Descubra o que ele disse, mundano e revele para os outros!"


   Após burburinhos da plateia, Tanelli continua.

   É claro que eu voltei até o Sr. Campestre e traduzi a mensagem. Aproximadamente, diz o seguinte:
   "Vamos embora pois temos que enfrentar um grande conflito. Talvez nunca mais nos falaremos. Você devem evitar que conflitos separem vocês entre si do modo como separou a nós entre nós." Depois ele termina em uma espécie de cumprimento, palavra que soa como "prosperar após dificuldade." Talvez, "Supere e Prospere."
   Bom, que proveito eu tirei desta experiência? Eu posso pensar em mil explicações racionais. (houve aí um suave falatório insatisfeito da plateia) Era um homem, era alto e bonito, mas era um homem. Ele... podia... ter algum tipo de lanterna na mão… não sei.  Algum descendente autista ou esquizofrênico, daquele povo antigo, que confundiu os idiomas…
   "Elfo", "espírito", "plêide", eram os palpites que emanavam da plateia.
   "Não, que isso?" Tanelli zombou e então continuou.

   Podia até mesmo ser um cúmplice da vigarista! Show de luzes… (isto causou alguma desordem na plateia) mas independente da onde veio esse Ashtar… eu descobri que sim, se pode enriquecer intelectualmente conhecendo novas formas de pensar. Mesmo que você escolha não acreditar. Eu não fiquei totalmente convencido que foi uma experiência paranormal e mesmo assim que eu tirei proveito da experiência.
   É muito importante sairmos de nossa bolha de pensamento para conhecermos outros ideais. Seja no âmbito religioso, político ou cultural. Discordar do outro… questionar, debater... é sempre saudável, mas transformar em um conflito… transformar em batriartha… nos separa e nos coloca a uma distância dos outros que não nos permite enriquecer com o contato com perceptivas diferentes da nossa.
   Galera, para discutir ideias é necessário proximidade. Ashtar, falso ou não, estava certo: entrar em conflito com quem pensa diferente nos separa e isso não é bom nem para os ideais do outros nem para os nossos ideais. É isso, boa noite.

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   Terminado assim o seu discurso, Gregório Tanelli desce aplaudido apesar de ter causado alguns pequenos "batriarthas" entre os alunos no que diz respeito ao que seria esse acontecimento registrado por ele.
   Embora tenha ficado claro a dificuldade do Gregório Tanelli em aceitar… eu diria… digerir o que ele presenciou, o trabalho dele foi, de longe, o melhor da escola. Ao final do evento, ninguém se lembrou da fraternidade AlphaTeta e a Estela nem apareceu; Fagundes subiu no palco e ficou falando sozinho, pois a plateia não pôde mais se concentrar em outra coisa. O salão de audiência levou um tempo incomum para esvaziar e as teorias ecoavam pelas paredes. A essa altura Tanelli já tinha ido pra casa e o velho Akshan estava recolhendo com cuidado o primoroso trabalho do seu aluno, após estuda-lo por uns quarenta minutos.
   Sabe, este professor tem uma gaveta trancada de onde, raras vezes, ele tira para ler para a classe histórias quase tão bizarras quanto essa do trabalho do Tanelli da época em que ele era arqueólogo. Povos e deuses e essas coisas. Aposto que o trabalho do Tanelli vai para lá.
   O que tirei de proveito da experiência que o Tanelli descreveu é que há muito mais no céu e na terra do que sonha nossa vã filosofia, mais ainda no céu.
    E para quem leu até o fim…  Aamátonaiel.

                                                                                    Um conto de Fernando Vrech

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